Por Ronaldo Bicalho / Infopetro
Por
trás da crise elétrica se desenvolve outro enredo que apresenta
consequências que vão muito mais além do que aquelas causadas pela
eventual falta de chuvas. Mudanças profundas estão ocorrendo nas bases
do setor elétrico brasileiro. São essas mudanças que irão ocupar a
agenda do setor nos próximos anos, colocando no centro das discussões os
problemas associados à transição elétrica. Do entendimento da natureza e
do alcance dessa transição irá depender não só o futuro do setor, mas, o
futuro do país.
O setor elétrico brasileiro foi construído a partir da exploração intensiva do potencial hidráulico do país.
De Marmelos a Belo Monte, de Henry Borden a Itaipu, passando por
Paulo Afonso, Furnas, Tucuruí, Xingó e tantas outras, as grandes
hidrelétricas são os pilares que sustentaram historicamente o sistema
elétrico brasileiro.
Se o aproveitamento do generoso potencial hidráulico se desenhou
rapidamente como o caminho natural do desenvolvimento elétrico
brasileiro, com as primeiras grandes barragens sendo construídas pela
Light no início do século passado – Parnaíba, Fontes e Henry Borden –,
seguida pelas nascentes estatais federais CHESF – Paulo Afonso – e
Furnas – Usina de Furnas -, a gestão dos grandes reservatórios foi a
pedra angular que alavancou esse aproveitamento, dando consistência e
amplitude incomuns à exploração dos nossos recursos hídricos.
Em primeiro lugar, tratou-se de construir reservatórios pra fazer
face à intermitência das chuvas, de tal forma a regularizar os fluxos de
geração hidrelétrica; em segundo lugar, cuidou-se de coordenar a gestão
dos reservatórios presentes em um mesmo rio ou bacia, de tal forma a
aproveitar ao máximo o seu potencial; e, em terceiro lugar,
aproveitou-se da diversidade hidrológica existente entre as diversas
bacias e regiões para explorar ao máximo a capacidade dos reservatórios,
regularizando em uma escala quase continental o estocástico regime
pluviométrico.
Essa sofisticada gestão dos reservatórios constitui o coração do
sistema elétrico brasileiro. A partir dela se articula toda a base
técnica, organizacional e institucional do nosso setor elétrico. As
regras de despacho, o papel das térmicas, a utilização dos modelos, a
tarifação, o custo marginal, o próprio PLD, entre outros, são
manifestações da natureza essencial desse setor: um setor basicamente
hidráulico no qual a otimização dos reservatórios joga um papel decisivo
na garantia do suprimento e na modicidade tarifária.
No entanto, transformações profundas estão em curso justamente na
base de sustentação do nosso modelo histórico de operação e expansão do
setor elétrico. Aqui, não se trata de eventos conjunturais e
superficiais, simples problemas de gestão, mas de fenômenos profundos
que atingem a fundação do modelo e sua estruturação. Aqui, trata-se de
reconhecer que existem mudanças que estão ocorrendo no coração do
sistema. Portanto, estamos falando de problemas estruturais que nada têm
de conjunturais, superficiais ou passageiros. São problemas que vieram
para ficar e que provavelmente tomarão muito do nosso tempo e de nossa
capacidade para resolvê-los.
No centro dessas mudanças encontram-se justamento os nossos
reservatórios. Em particular, a sua capacidade de regularização, por
conseguinte, a sua capacidade de fazer a ponte entre o potencial
hidráulico e a garantia do suprimento e a modicidade tarifária.
O sistema elétrico brasileiro é, em princípio, um sistema
hidrotérmico. Um sistema no qual, quando há escassez de chuvas, as
centrais térmicas entram cobrindo as hidrelétricas de maneira a
regularizar o fluxo elétrico. Nesse caso, as térmicas são o nosso
seguro, o nosso hedge, o recurso final a garantir a eletricidade que
precisamos na quantidade, no momento e no local que precisamos.
Contudo, cabe salientar que essa “hidrotermicidade” tem se alterado profundamente ao longo do tempo.
Inicialmente, os grandes reservatórios eram plurianuais. Ou seja,
armazenavam água por anos. A energia armazenada nesses reservatórios
excedia em muito a demanda anual de eletricidade. Nesse contexto, o
recurso às térmicas era esporádico e praticamente irrelevante.
Na verdade, o seguro para a variabilidade do regime pluviométrico não
estava nas térmicas, mas na água que se encontrava nos reservatórios;
para ser exato, na água que se encontrava no conjunto dos reservatórios,
cada vez mais integrados na medida em que a interconexão do sistema
avançava. Água cobrindo água. A água dos reservatórios cobrindo a água
das chuvas.
Nesse quadro, o papel das térmicas era modesto e limitado. É como a
casa de praia que tem uma caixa d’água de 100 litros que quando não
entra água da rua o máximo que pode acontecer é ter que recorrer ao bar
da esquina pra comprar dois ou três litros de água. Na verdade, quem
segura não é o bar, mas a capacidade de estocagem da caixa d’água.
Dizem que em 1994, a defesa da seleção brasileira era tão forte que a
bola nunca chegava ao goleiro. Dessa maneira, Taffarel tinha o melhor
emprego do mundo, pois nunca era exigido. Assim, eram as nossas
térmicas, nunca eram exigidas durante esse período no qual a nossa
“hidrotermicidade” tinha muito mais de “hidrocidade” do que de
“termocidade”.
Com o passar do tempo, o crescimento forte da demanda e as crescentes
restrições – técnicas, econômicas, institucionais e políticas – à
construção de grandes reservatórios foram alterando a natureza da nossa
“hidrotermicidade”.
A drástica redução da capacidade de regularização dos nossos
reservatórios foi mudando a natureza do nosso problema. Note-se que não
se trata simplesmente de se equacionar a operação e a expansão de um
sistema hidrotérmico. Em tese, esse equacionamento já estava presente
nos modelos de gestão e expansão do sistema. Contudo, como já vimos, era
uma “hidrotermicidade” que, de fato, não existia; ou, no mínimo,
bastante limitada em suas consequências. O problema agora é enfrentar
uma “hidrotermicidade” real e efetiva em todas as suas consequências.
Com todos os seus riscos técnicos, econômicos e políticos.
Assim, a ida ao bar, para fazer face à água que não entrou da rua,
envolve a compra de 20, 30, 40 litros de água; não mais os singelos 2 ou
3 litros de outrora. A caixa d’água continua lá, com os seus 100
litros. O problema é que ela não dá mais conta da demanda e o bar passa a
ter relevância. Da mesma maneira que o goleiro passa a ser fundamental
na medida em que a defesa não segura mais o rojão.
Enfim, o jogo mudou, e a armação do time também vai ter que mudar. No
coração da mudança: o papel dos reservatórios; e de tabela, o papel das
térmicas.
A manutenção de uma gestão do sistema que coloca as hidrelétricas e
seus reservatórios como a grande linha de sustentação da garantia do
suprimento e da modicidade tarifária para toda a demanda, com as
térmicas entrando simplesmente para cobrir a falta esporádica de chuvas,
não é mais sustentável.
A perda de capacidade de regularização dos reservatórios fez com que
as térmicas passassem a atuar de forma cada vez menos esporádica. A
maior continuidade operacional passou a ser um problema para o sistema,
na medida em que essas térmicas não foram desenhadas para essa função.
Se antes, as térmicas desempenhavam o papel do líbero que cobre
eventualmente as raras falhas da linha de zagueiros formada pelas
hidrelétricas, agora, essas falhas são constantes, fazendo com que o
líbero jogue durante uma grande parte do tempo praticamente na linha de
zagueiros, não só perdendo sua capacidade de cobertura, mas
desempenhando uma função para o qual ele não está preparado.
Enfim, a estratégia inadequada ao novo contexto gera uma serie de
inconsistências que vão desestruturando o setor tanto em termos técnicos
quanto econômicos.
A questão fundamental é que a água dos reservatórios não segura mais a
demanda. Este não é um dado conjuntural. Este é um dado estrutural.
Portanto, é evidente que parte da demanda terá que ser atendida
diretamente pelas térmicas. Estas térmicas não podem ser as mesmas de
antes. Não podem ser aquelas concebidas para operarem esporadicamente,
na chamada ponta; têm que ser térmicas projetadas para operarem
continuamente; ou seja, na base.
Com a entrada das térmicas na base é possível recuperar a capacidade
de regularização dos reservatórios, não só para cobrir a volatilidade
hidráulica, mas também para cobrir a variabilidade eólica. Assim, por um
lado, a água volta a cobrir a água e, mais do que isso, passa a cobrir
também o vento. Por outro lado, parte das térmicas passa a operar direto
e outra parte continuará a cobrir, esporadicamente, as águas.
Dessa maneira, a composição de uma grande linha de suprimento,
composta de hidroelétricas e térmicas operando na base, recompõe o
sistema elétrico brasileiro de uma forma mais coerente com a realidade
atual dos nossos recursos. E, mais do que isso, cria condições de
exploração de fontes renováveis, naturalmente intermitentes – como
eólica e solar -, extremamente favoráveis. Graças a nossa enorme
capacidade de estocagem representada pelo nosso grande sistema de
reservatórios, temos uma baita vantagem competitiva em relação a outros
sistemas elétricos, em tempos de introdução de renováveis para fazer
face à mudança climática.
Enfim, sobre os grandes reservatórios construímos o nosso setor
elétrico. As transformações profundas que estão ocorrendo mudarão o
papel desempenhado até agora por eles. Contudo, essa mudança não diminui
o papel desses reservatórios na garantia do suprimento e da modicidade
tarifária, apenas muda a sua natureza.
Na verdade, a solução dos nossos problemas continua nas águas que
estão nos nossos reservatórios. A diferença é que elas podem valer muito
mais do que nós as valorizamos correntemente. E não pelas razões
costumeiras de serem as mais baratas fontes de energia elétrica, mas por
serem estratégicas no contexto da transição energética em marcha no
mudo.
O grande desafio do Estado brasileiro no âmbito do setor elétrico é
reinventar esse setor. É, em primeiro lugar, reconhecer a necessidade da
transição elétrica; em segundo lugar, inovar de tal forma a reduzir os
custos dessa transição e a abrir novos espaços de geração de vantagens
competitivas para o país; e, em terceiro lugar, gerenciar os custos e os
benefícios dessa difícil transição, repartindo os bônus e os ônus
dessas mudanças entre os agentes econômicos e os atores sociais.
Nesse sentido, o papel do Estado é fundamental. Só ele tem a
capacidade de mobilizar os recursos técnicos, econômicos e
institucionais envolvidos nessa transformação radical.
Como o sapo, o setor elétrico não pula por gosto, mas pula por necessidade, por precisão.
Pois bem, está na hora desse sapo pular outra vez. E não é um pulo qualquer. É o pulo decisivo para o futuro do país.
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