quarta-feira, 25 de maio de 2016

A crise na Ucrânia: o gás russo versus o shale gas americano

Por Marcelo Colomer / Infopetro

marcelo032014A aprovação do referendo que apontou o desejo da maioria dos crimeios (96,8%) pela incorporação da península à Rússia pelo parlamento crimeano desencadeou a reação política dos Estados Unidos e de seus aliados na Europa. Após o referendo do dia 16 de março, a Casa Branca decretou sanções contra altos funcionários do governo Russo e alguns cidadãos ucranianos envolvidos com a separação da Criméia. O vice-primeiro-ministro russo Dmitri Rogozin, a presidente do Conselho da Federação (câmara alta do Parlamento) Valentina Matvienko, o deposto presidente ucraniano Viktor Yanukovich entre outros indivíduos envolvidos tiveram os seus ativos nos EUA congelados e seus direitos de entrada no país suspensos. Na Comunidade Europeia, inúmeras personalidades ucranianas e russas tiveram seus bens bloqueados e seus direitos de trânsito nos países da Comunidade também suspensos. Apesar de aparentemente estar havendo uma reação europeia ao comportamento russo, o tom ameno das ameaças e a demora de posicionamento dos países europeus chama a atenção da importância econômica da Rússia na região, principalmente como importante fornecedora de gás natural.

A atual crise na Ucrânia teve início em 22 de novembro de 2013 quando o então presidente Viktor Yanukovich desistiu de assinar um pacto de livre comércio com a União Europeia. O fracasso do acordo reflete a estratégia do ex-presidente ucraniano em estreitar seus laços com o governo de Moscou que, por sua vez, via na Ucrânia (maior[1] país do continente europeu em extensão territorial) uma importante aliada na estratégia de fortalecimento do poder geopolítico russo na região, diminuído desde o fim da União Soviética. É importante ressaltar que, desde o século XVIII, o Mar Negro é a principal base de operação da marinha Russa (Soviética entre 1918 e 1991) com destaque para as cidades de Sevastopol, Balaklava, Chernomorsk, Mekenzerye e Gvardeyskoye, todas localizadas na península da Criméia.
Além da importância militar da região, a Ucrânia destaca-se como uma das principais “portas” de entrada do gás natural russo no continente europeu. Até 2011, cerca de 80% das exportações russas de gás natural para a Europa transitavam pela Ucrânia (EIA, 2014). A partir do início das operações do sistema de gasodutos North-Stream em 8 de novembro de 2011 (que liga a Rússia diretamente a Alemanha pelo Mar Báltico) a importância da Ucrânia nas exportações para a Europa se reduziu embora ainda mantenha-se bastante expressiva. Em 2013, por exemplo, 54% das exportações russas para Europa (85 Bmc) transitaram pela Ucrânia, o que foi equivalente a 16% de todo do gás consumido no continente europeu (EIA, 2014).
Dentro desse contexto, a atual crise envolvendo Rússia e Ucrânia traz não somente apreensão em torno de possíveis conflitos armados no leste europeu como também aumenta as preocupações de uma possível disrupção de parte do fornecimento de gás natural para a Europa[2]. O temor europeu se justifica pelo histórico de retaliações do presidente Putin. Em sua campanha para restaurar o domínio russo sobre os Estados pós-soviéticos, o presidente russo tem frequentemente usado seus vastos suprimentos de gás natural como “arma estratégica”.
Em 2005, uma disputa entre a companhia ucraniana de óleo e gás Naftohaz e a empresa russa Gazprom em relação ao preço do gás natural russo e às tarifas de movimentação ucranianas levou, em 1º de janeiro de 2006, ao corte de todo o fornecimento de gás natural que passava pelo território ucraniano. Em 4 de janeiro do mesmo ano, um acordo entre Rússia e Ucrânia permitiu o restabelecimento do fornecimento para a Europa embora as tensões entre os dois países tenham se mantido até o presente momento com frequentes casos de interrupção no fornecimento (março de 2008, janeiro de 2009). Além dos casos envolvendo a Ucrânia em 2006 e 2009, a Gazprom, em 2010, reduziu a oferta para a Bielorrússia, e, em 2013, a Rússia ameaçou os moldavos com a mesma punição caso estes não abandonassem os seus planos de assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia. O uso geopolítico do gás pela Rússia na Europa tem se refletido claramente em grandes flutuações nos preços do gás natural como podemos ver no gráfico abaixo.
Figura 1– Evolução dos Preços do Gás Natural na Europa entre 1999 e 2012 
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Fonte: ICE, 2013
Certamente, a relutância dos países europeus em adotar uma postura mais austera em relação ao apoio russo a separação da Criméia passa pela importância da Rússia no fornecimento de gás natural para a região. É provável que a suposição de que a Europa não iria correr o risco de um grande embate em torno da questão da Ucrânia em função da sua dependência energética tenha sido incorporado nos cálculos russos.
O uso geopolítico do gás natural parece ser uma estratégia astuta de Moscou. Contudo esse é um exemplo clássico de priorização dos interesses de curto prazo frente aos ganhos de longo prazo. Isso porque o cenário de incerteza criado pelas constantes ameaças russas tem levado a Europa a buscar novas fontes de suprimento e uma redução de sua dependência em relação à Rússia.
Após as crises de 2006 e 2009, a Europa aumentou suas importações da Noruega e do Catar. Também verificou-se no mesmo período o aumento do número de terminais de regaseificação e da capacidade de estocagem de gás natural no continente. As conexões entre os diversos gasodutos europeus foram melhoradas, tornando mais fácil o ajuste de capacidade de transporte em momentos de escassez. Nesse contexto, a atual crise da Criméia parece dar um novo impulso ao esforço europeu de redução de sua dependência energética.
Um documento preparado para a próxima reunião de cúpula da UE destaca a “alta dependência energética” do continente e exorta que membros da união europeia diversifiquem suas fontes de suprimento de energia. Esse movimento nos remete a década de setenta quando após a crises do petróleo, o Ocidente e o Japão perceberam que a dependência em relação aos países da OPEP ameaçava a estabilidade econômica e a segurança energética.
Nessa direção, a assinatura de um contrato de exploração entre o governo da Ucrânia e a Chevron para início da exploração de gás não convencional despertou a atenção dos executivos da Gazprom e do governo russo que rapidamente fizeram questão de enfatizar os perigos relacionados ao fraturamento hidráulico, transformando Putin no ambientalista mais improvável do mundo. Contudo, no resto da Europa, a exploração do gás não convencional ainda enfrenta inúmeras barreiras não só ambientais mas também relacionadas às questões institucionais e de direito de propriedade.
Enquanto essas questões não são equacionadas no continente europeu, países como Polônia, Hungria, Eslováquia e República Checa pressionam os EUA para aumentar as exportações de GNL para a Europa. Aproveitando a pressão internacional, os congressistas republicanos também têm defendido o aumento das exportações de gás como forma de combater a Rússia. Nessa mesma direção, o Instituto Americano do Petróleo (formado pelas 500 maiores empresas de petróleo americanas) tem usado a crise da Ucrânia para pressionar o congresso a aprovar, com caráter de urgência, uma regulação que facilite a exportação de gás natural.
Milhões de dólares têm sido gastos em Washington com lobistas que defendem que o aumento das exportações de gás natural não só reduziria a influência russa na Europa como também criaria novos postos de trabalho nos EUA com pouco impacto sobre os preços domésticos do gás natural. Para ajudar a desemperrar a nova legislação, a indústria de petróleo e gás norte-americana já gastou desde 2007 mais de 150 milhões de dólares em contribuições de campanha e contratou mais de 760 lobistas registrados (Center for Responsive Politics, 2014). Além dos gastos com lobby e campanhas, o Instituto Americano do Petróleo e a America’s Natural Gas Alliance gastaram, conjuntamente, 245 milhões de dólares em publicidade dirigida a eleitores para suavizar suas visões sobre o fraturamento hidráulico e outras prioridades do setor.
Figura 2 – EUA: Contribuição para Campanhas das Principais Empresas de Petróleo e Gás entre 2013-2014
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 Contributions to Democrats, Republicans and Outside Spending Groups
 Fonte: Center for Responsive Politics, 2014
Em fevereiro de 2014, um documento elaborado pela consultoria NERA mostrou que em todos os cenários analisados os benefícios econômicos líquidos do aumento da exportação de GNL nos EUA seriam positivos (NERA, 2014). Isso porque o aumento do preço doméstico do gás natural trazido pela expansão do mercado externo seria compensado pelo crescimento do valor das exportações. Assim, a perda de bem-estar decorrente do aumento do preço da energia e da redução do consumo seria compensado pelo aumento das transferências externas a partir do pagamento do serviço de liquefação e transporte de GNL.
Assim, aproveitando-se da conjuntura internacional, nada menos do que seis projetos de lei foram apresentados no Congresso americano nas últimas duas semanas destinados a aceleração da liberalização das exportações de gás natural liquefeito. Marty Durbin, presidente da America’s Natural Gas Alliance (maior grupo de empresas independentes de gás natural) enfatizou a importância da atual crise na Ucrânia no debate sobre a liberalização das exportações de GNL nos EUA: “We certainly like the fact that the Ukraine has essentially elevated the debate over the LNG exports”.
Todos os seis projetos de lei têm como ponto em comum a adoção de medidas de emergência que auxiliem a equilibrar o poder do presidente russo, Vladimir Putin, sobre a Ucrânia e a Europa. No entanto, o caráter emergencial é muito mais um oportunismo político do que uma solução efetiva para a crise no leste europeu. Isso porque mesmo que as exportações norte-americanas para a Europa fossem liberadas, a construção da infraestrutura necessária demoraria até pelo menos o final de 2015 para ser concluída. Ademais, não há como assegurar que as exportações de GNL se destinarão para a Europa uma vez que os preços no mercado asiáticos mostram-se atualmente mais atrativos do que na bacia do Atlântico. Segundo o secretário de energia dos EUA, Enest Moniz, os EUA não tem a capacidade física para aumentar as exportações de GNL e nem a capacidade de determinar para onde irão as exportações de GNL.
As normas atuais de exportação de gás natural exigem um processo de licenciamento especial para as exportações destinadas a países que não têm acordos de livre comércio com os EUA. Os projetos de lei que tramitam no Congresso norte-americano visam, desta forma, estimular as exportações de gás para os aliados da Otan e para outros países, incluindo Japão e Índia, a partir da renúncia do processo de licenciamento e da concessão de licenças de exportação para os 24 projetos de GNL que atualmente aguardam a aprovação do Departamento de Energia. Fica claro que a indústria norte americana de petróleo e gás natural está se utilizando da crise na Criméia para pressionar, através da opinião pública internacional e doméstica, a liberalização das exportações de GNL, principalmente para a Ásia.
Apesar do oportunismo político no entorno da questão ucraniana, é fato que o aumento das exportações dos EUA irá pressionar o mercado de gás natural enfraquecendo a posição russa, não importando para onde o gás irá realmente. Os EUA encontram-se muito bem posicionados para competir com a Rússia nos mercados asiáticos, que são cada vez mais importante para os negócios da Gazprom. Na verdade, o aumento recente da produção de gás nos EUA já vem enfraquecendo a Rússia uma vez que antigos supridores do mercado norte-americano (Nigéria, Trinidad Tobago, Catar) encontram-se hoje livres para exportar para outros mercados. O Catar, por exemplo, quadruplicou seu fornecimento de gás para a Europa entre 2008 e 2013.
Essa diversificação das fontes de suprimento tem levado a uma revisão dos preços para baixo. A Gazprom, que historicamente atrelava seu preço ao preço do petróleo (mantendo-se insistentemente alto), teve que fazer concessões de preços a alguns países. Ainda assim, o papel da Rússia no mercado internacional de gás natural depende apenas de suas próprias ações. Sendo o segundo maior produtor de gás natural do mundo e tendo um extenso sistema de gasodutos para a Europa, a Rússia, sem sombra de dúvida, é o fornecedor com menor custo para o continente europeu. Ademais, o avanço das negociações com a China visando o início das exportações para o país criam uma alternativa de mercado que aumenta o poder de barganha russo. Assim, se Gazprom for vista como um fornecedor confiável e não como uma ferramenta do governo russo, a posição da empresa no mercado de gás natural dificilmente poderá ser ameaçada pelo gás não convencional norte-americano.
O problema de Putin é que o uso estratégico da energia russa tem limites. A Rússia depende das receitas do petróleo e do gás para financiar suas ambições imperiais e manter a estabilidade doméstica. Assim, alienar clientes dando aos concorrentes uma abertura não é apenas um mau negócio, é uma má política também.

Bibliografia
EIA, 2014. Em http://www.eia.gov/todayinenergy/detail.cfm?id=15411
ICE, 2013. Em https://www.theice.com
Center for Responsive Politics, 2014. Em http://www.opensecrets.org/industries
NERA, 2014. Updated Macroeconomic Impacts of LNG Exports from the United States

[1] Maior país em extensão totalmente no continente europeu.
[2] Em 2013, 30% do gás importado pela Europa proveio da Rússia (EIA, 2014)

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