A principal motivação do novo arcabouço setorial era garantir a segurança do abastecimento. Para cumprir esse objetivo, o Estado retomou o papel de coordenador e planejador setorial e o regime contratual do setor foi modificado. No Ambiente de Contratação Regulado, as distribuidoras atenderiam 100% de sua necessidade através de contratos de longo prazo negociados através de leilões competitivos.
Os leilões de energia nova concediam um poderoso mecanismo para a implementação do planejamento do setor. Guiado pelos estudos da EPE, o governo podia ditar o ritmo de entrada de nova capacidade e definir a evolução da estrutura da matriz de geração conforme os objetivos de política energética. O modelo brasileiro passou a ser reconhecido como um exemplo pela literatura setorial[1].
No entanto, a entrada em 2014 foi bastante problemática para o setor elétrico brasileiro. Os baixos níveis dos reservatórios hidrelétricos, 36% no subsistema Sudeste/Centro-Oeste e 42% no Nordeste, reavivaram o temor de racionamento e o desequilíbrio financeiro causado por custos não incorporados já soma um déficit de R$ 30 bilhões e foi objeto das medidas tomadas pelo governo no dia 13/03 para evitar o colapso financeiro das distribuidoras. Essa postagem busca identificar o que deu errado com o modelo do setor elétrico para experimentar essa situação crítica no início de 2014.
Essa situação crítica é fruto de fatores conjunturais, estruturais e políticos. Apesar dos impactos desses fatores não serem desassociáveis, convém apresentá-los de forma separada.
Como fatores conjunturais, o sistema elétrico brasileiro experimenta uma situação crítica por parte da oferta e da demanda. Isso pode ser confirmado pelas séries divulgadas pelo ONS. Pelo lado da oferta, a hidrologia experimentada entre 2012 e 2014 tem sido desfavorável, principalmente no Nordeste. Em 2012, quando iniciou a trajetória de esvaziamento dos reservatórios, a hidrologia no subsistema Sudeste/Centro-Oeste correspondeu 92% da média histórica e no Nordeste, 73%. Em 2013, a hidrologia no Sudeste foi 2% superior à média e 55% da média no Nordeste. A hidrologia no início de 2014 tem sido particularmente baixa, 52% da média no Sudeste e 42% no Nordeste.
Pelo lado da demanda, o crescimento do consumo foi forte no início de 2014. Nos dois primeiros meses a carga do sistema interligado (SIN) foi 10% maior à observada em 2013. No entanto, o crescimento do consumo em 2012 e 2013 não foi tão significativo. Nesses anos, a carga do SIN cresceu 4,5% e 2,5%, respectivamente.
Os dados de hidrologia e consumo, apesar de desfavoráveis, não são suficientes para explicar a crise que experimenta o setor elétrico brasileiro. Em um sistema elétrico robusto essas condições não deveriam comprometer de forma tão significativa a segurança do abastecimento e as finanças setoriais.
Entre os fatores estruturais, a capacidade instalada de geração do sistema elétrico acompanhou o crescimento do consumo de eletricidade desde 2004 (Figura 1). O acréscimo de capacidade ocorreu a um ritmo de 3,8% ao ano que é a mesma taxa de crescimento do consumo de eletricidade. Ou seja, a expansão da capacidade de geração não é o fator determinante da crise atual
Evolução da Capacidade Instalada de Geração e do Consumo de Eletricidade (2004=100)
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da EPE.
Um fator estrutural determinante para a crise é o papel que os
reservatórios hidrelétricos ocupam no sistema elétrico brasileiro. Esse
tema foi tratado na postagem anterior, “A transição elétrica: muito além da falta de chuvas” de Ronaldo Bicalho.
Nos últimos 10 anos, a capacidade de regularização dos reservatórios
brasileiros caiu de seis para cinco meses e deve cair para quatro meses
até 2020 (figura 2).
Figura 2 – Capacidade de regularização dos reservatórios hidrelétricos (2002-2021)
Fonte: EPE (2011), Plano Decenal de Expansão de Energia 2020. P. 67.
Considerando que as termelétricas teriam um papel complementar na composição da oferta, os leilões de expansão privilegiaram a contratação de usinas flexíveis. Assim, foram contratadas usinas termelétricas a óleo combustível e a GNL. Mas, a flexibilidade implica em custos operacionais significativamente elevados. Em alguns casos, o custo variável de operar essas térmicas se aproxima de R$ 1.000/MWh.
Essa composição de oferta seria adequada se as termelétricas operassem apenas de forma esporádica, mas não é o que tem ocorrido. A operação continuada dessas termelétricas, que não foram planejadas para esse papel, implica em custos insuportáveis para a sociedade. Segundo estimativas, em 2014 o custo de operação das termelétricas em regime quase integral será próximo a R$ 20 bilhões.
A operação inadequada dos reservatórios ficou clara no ano de 2012, quando o nível de energia acumulada nos reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste saiu de 80% em fevereiro para chegar em dezembro com 29% (figura 3). A sobre utilização dos reservatórios em 2012 é determinante da situação vulnerável de abastecimento que se experimenta atualmente.
Figura 3 – Evolução do Nível de Acumulação dos reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste em 2012
Fonte: Elaboração Própria. Dados ONS.
Os fatores políticos que impulsionaram a crise atual estão relacionados ao processo de renovação das concessões e de precificação de eletricidade. O compromisso de reduzir as tarifas de eletricidade através da renovação das concessões, que resultou na Lei 12.783/2013, gerou um desequilíbrio contratual no setor elétrico brasileiro.
Como foi destacado anteriormente, uma das medidas essenciais do novo modelo é a obrigatoriedade das distribuidoras contratarem 100% de sua demanda, reservando ao mercado de curto prazo um papel apenas de balanço temporário. Com o vencimento dos contratos de energia existente negociados em 2004, no início do novo modelo, as distribuidoras teriam de recompor seus portfólios de contrato. Parte foi recomposto com o sistema de cotas provenientes das empresas de geração que aceitaram renovar as concessões, com preços mais baixos. Mas parte, correspondente às empresas que não aceitaram a renovação, como Cemig, Copel e Cesp, ficou descontratada.
O governo realizou leilões de energia existente para recompor essa oferta, mas apenas o realizado em dezembro de 2013 obteve interessados, em volume insuficiente para cobrir o desequilíbrio. Cerca de 3,5 GW médios estão descontratados, o que representa 5% da energia consumida no Brasil. Assim, a meta de contratação de 100% da demanda deixou de ser cumprida e as distribuidoras têm uma exposição involuntária ao mercado de curto prazo, quando o preço de liquidação de diferenças (PLD) atinge seu valor máximo, R$ 822/MWh. Com um cálculo simples podemos estimar que em um mês em que o PLD permaneça em seu valor máximo, o custo total dessa exposição é de R$ 2 bilhões!
Por fim, o compromisso de manter o preço da eletricidade baixo inviabilizou a adoção de medidas que permitissem a sinalização ao consumidor final da escassez da eletricidade. O caso do adiamento da vigência das bandeiras tarifárias é ilustrativo. Pelo sistema de bandeiras tarifárias, o consumidor final pagaria um adicional a sua tarifa de eletricidade de R$ 3 a cada 100 KWh consumidos, quando o PLD estivesse superior a R$ 200/MWh (bandeira vermelha) e de R$ 1,50, quando o PLD estivesse superior a R$100/MWh (bandeira amarela). Além de prover recursos para compensar o despacho térmico, o uso das bandeiras poderia motivar uma redução do consumo, o que seria interessante no momento de escassez. O percentual de aumento das tarifas finais depende do tipo do consumidor e da distribuidora[2]. A previsão era que o sistema começasse a valer a partir de janeiro de 2014, o que foi adiado para 2015. Assim, um mecanismo que contribuiria para a mitigação dos efeitos crise do setor elétrico não foi adotado devido ao compromisso político de reduzir os preços da eletricidade.
A conjunção de fatores conjunturais, estruturais e políticos acarretou em uma crise grave do setor elétrico brasileiro. Mesmo que não implique em racionamento de eletricidade, a crise de 2014 gera um custo significativo para a sociedade brasileira na forma de tarifas futuras mais elevadas e do desajuste das contas públicas.
Fonte: o excelente Luciano Losekann / Infopetro
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